terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Ser por inteiro

Martins ao fundo (ciumento), 
Peta no meu colo

Com o tempo e por causa da deficiência desenvolvi a habilidade de perceber os gestos e os olhares das pessoas. Pode parecer bobeira, mas não é, consigo perfeitamente identificar nos outros a essência e a intenção de cada um, as vezes pode demorar um pouco ou até mesmo eu custe a aceitar, mas nunca falha.

Ser pessoa com deficiência me proporciona vivenciar relações humanas mais intensamente, vos digo que poderia destrinchar inúmeras situações, mas hoje vou falar da forma como eu vejo a gratidão. Quem me conhece sabe, tenho muita facilidade em fazer novas amizades, me dou o trabalho de alimentar novas relações mesmo que passageiras, costumo entrar e sair da vida das pessoas pela “porta da frente” (existem variáveis não nego). Mas quando trago a palavra gratidão, carrego junto com ela a obrigação de ser, quando na verdade ninguém é obrigado, principalmente eu. (Agradecer não funciona assim, custei pra aprender isso)

Desde a descoberta da EM (Esclerose Múltipla) já passei por quatro tipos de tratamento e de todos o ultimo foi o que mais mexeu comigo, só pra resumir, após ter ficado internado cinco dias recebendo uma medicação extremamente forte, precisei voltar para o hospital. Eu estava com meningite, lembro-me dos médicos usarem a expressão: “doença oportunista”, visto que a medicação havia alterado todo meu sistema imunológico, como se já não bastasse todos os efeitos colaterais da medicação e das doses cavalares de corticoide, mal sabia eu que durante o mês que se passará no hospital seria tão violento. 

Fiquei totalmente dependente das pessoas, e quando digo dependente quero dizer que não tive forças para absolutamente NADA, por vários dias me deram banho, me limparam e me deram comida, eu simplesmente estava lá, a mercê de quem cuidou de mim. Durante esse período pude perceber o amor incondicional da minha família que não abdicaram um dia se quer da vida deles para ficar comigo. (Obrigado, eu amo vocês!) 

Foi nesse período que desenvolvi a habilidade de perceber os olhares, os gestos e os toques das pessoas por mim. Pelo olhar, consigo reconhecer a dó, a empatia ou a indiferença. Pelos gestos, consigo reconhecer o amor e a consideração (ou a falta dela) e pelos toques, consigo reconhecer o carinho, o zelo, o incomodo (nojo) e a obrigação de ter que fazer.

Nunca esqueço, uma vez eu e minha mãe havíamos ido viajar, eu estava na cadeira de rodas e meu chinelo escapou do pé, lembro como se fosse hoje, ela se ajoelhou diante de mim, com a maior calma do mundo pegou meu chinelo, apoiou meu pé sobre as mãos e me calçou. (Tudo isso embaixo do sol)

Olhei toda a cena como se eu não estivesse fazendo parte dela e observei o amor com que ela fez tudo isso, foi como se o tempo tivesse parado naquele momento e quando dei por mim estava com os olhos carregados olhando para ela, e ainda no chão ela olhou pra mim, sem ao menos precisar explicar o meu sentimento naquela hora, ela me olhou, sorriu e disse:

- Eu faria isso o dia todo se precisasse. 

Puxei o ar e com um nó na garganta respondi com a voz embargada no choro:

- Eu sei, meu amor. 

Ser Pessoa com Deficiência é lidar com um turbilhão de sentimentos.

Sim, eu tenho autonomia para atividades da vida diária, eu consigo fazer as coisas, mas não nego que toda ajuda é bem vinda.

(Calma, acho que a palavra não é essa, vou reformular...)

Ser Pessoa com Deficiência é lidar com um turbilhão de sentimentos.

Sim, eu tenho autonomia para atividades da vida diária, eu consigo fazer as coisas, no meu tempo, MAS NÃO NEGO QUE COM AMOR AS COISAS FICAM MUITO MELHORES.

Como eu sempre digo, que seja de inteiros e não de metades. (Essa frase inspirada na saudosa e eterna Clarice, como ela mesma disse, algumas pessoas nunca morrem)


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Pena que o nosso tempo,
não é o tempo que queremos

Mas é o tempo necessário,
do tempo que estamos precisando.
                       Salvador Neto